agosto 04, 2007

Saldada a dívida


Um casarão com quinhentos anos e boa comida deste tempo: é isto a Casa da Dízima, em Paço de Arcos.

Espere o leitor mais um pouco porque, depois de uma paragem - na próxima semana - em Lisboa, seguiremos viagem para o Porto e para o Minho. Será um regresso. E depois do Minho seguiremos para Trás-os-Montes, e de Trás-os-Montes voltaremos a Setúbal. O calendário de intenções fica, portanto, dis­ponível depois de na semana passada termos chega­do ao termo de Cascais, com o pernil – salvo seja – de O Pereira. Regressamos agora, pela Marginal, ao cre­púsculo mais belo da zona de Lisboa; não cansa; não esgota os tons de azul; não afasta anti-românticos como eu, com lamechices - é puro crepúsculo, suave e apetitoso, a quem teremos de pagar o dízimo. Onde? Na Casa da Dízima, e lá voltamos a Paço de Arcos para sossegar estômago e papilas, matar a sede com uma carta de vinhos superlativa, tranquilizar o espírito com um ambiente que parece feito de tons pastel - mas não é. Trata-se apenas de um casarão criado no século XV, aumentado no século XVIII, e cuja traça, espinal-medula e cores originais foram há cerca de quatro anos recuperadas pela família que teve a sorte de o chamar seu. A inveja é uma coisa boa, como se percebe.

Quando a gente se aproxima do cardápio de um res­taurante tem a tentação, genuína e ingénua, de dizer que "isto" ficava melhor "desta outra forma" e que haveria correcções a fazer. Eu abstenho-me. Acho que as coisas são como são. Se o chefe decidiu que iria ser "assim", é "assim" que eu olho para o prato. Se me apetecer de outra maneira, ou vou a outro lado, ou venho para casa cozinhar e, às tantas, abrir um res­taurante. Por exemplo: as amêijoas à Bulhão Pato, estarão elas de acordo com a regra? Ligeiramente ao lado. São suculentas, são nobres, são carnudas; não têm o molho irrequieto e cheio de manigâncias daquela tasquinha onde costumo revirar os olhos ao levar o pãozinho à travessa, recolhendo-o húmido, cheio de alho e coentros; mas uma coisa é o que nós queremos que elas sejam, e outra, inteiramente dife­rente, é o que as coisas são. Portanto, nota positiva para as amêijoas da Casa da Dízima, tal como para a saladinha de camarão e alho francês com molho vilão – numa lista de entradas que se completa com um creme de abóbora com segurelha e cantarelos; um aveludado de camarão; 'vol-au-vent' recheado de presunto e cogumelos com redução de vinho do Porto, presunto e vinagre balsâmico; 'carpaccio' de polvo com vinagrete de pimentos; salada de lagosta; trouxa de queijo de cabra; 'foi-gras' em brioche; viei­ras salteadas com azeite de trufas sobre 'foie-gras'; sala­da de lentilhas e peito de pato fumado; faltou-me exi­gir para a mesa uma pêra rocha recheada com queijo da serra, que não vi mas de que me falaram em tem­pos. Seja como for, e depois de salvar diante do risoto de camarão com abóbora ou do risoto de coco e caril com tempura de caranguejo, saltámos para a hipóte­se de uma concha de mariscos com puré de batata e recheio de mariscos, para um folhado de bacalhau com camarão e legumes salteados, cherne salteado sobre feijoada de choco e gambas, lula recheada com tamboril e açorda de camarão com espargos, para, no fim, ficar com os filetes de peixe-galo com risoto de lima, piscando o olho a outros peixes na categoria de grelhados (robalo, dourada, pregado, tamboril). O peixe-galo é sedutor, e este estava perfeito; não perce­bo, havendo peixe-galo, a razão por que se dá tanto espaço ao horror dos mares, o tamboril. Adiante. Adiante, que vêm as carnes - lombo de novilho com lagosta e batata frita, peito de frango do campo com recheio de enchidos, lombinho de porco com amêijo­as, de legumes e esparregado (recheios do Alentejo), medalhão de vitela com molho de trufas, um 'magret' de pato com 'chutney', batata gratinada e molho agri­doce, um lombo de novilho com queijo serra da Estrela (não entendo, não entendo, não consigo entender - mas sou eu), esparregado e legumes. Fiquei-me pelo 'magret'; também aqui, quase perfei­ção, filamentos dourados, ligeiramente retidos pêlos açúcares da preparação, excelente.

Retenho da lista de sobremesas aquilo que sempre me faz pensar que a simplicidade merece prémio: um requeijão com doce de abóbora e amêndoa (sob pro­posta da casa, servido com um Porto 'tawny'), embo­ra colherando aqui e ali numa boa lista. Vinhos, muito bons (prove os 'ice wine'). Lista de vinhos a copo muito boa. Paguei a dízima. Voltarei.

À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 126
Vinhos brancos: 46
Espumantes & Champanhes: 16
Aguardentes portuguesas: 14
Colheitas tardias e moscatéis: 7
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 24

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente fácil à noite
Levar crianças: não
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 40 Euros

CASA DA DÍZIMA
Rua Costa Pinto, n.º17
Paço de Arcos
Tel: 214 462 965
Não encerra

in Revista Notícias Sábado – 4 de Agosto 2007

Etiquetas: