setembro 24, 2007

Kate

Nesta altura, o número de portugueses que não emitiu uma opinião definitiva sobre o caso Madeleine McCann é muito reduzido, mesmo que a “opinião definitiva” seja apenas passageira. É natural e inevitável: estão presentes, no caso Madeleine McCann, quase todos os ingredientes do drama – o rapto ou o homicídio, a criança que é raptada por um criminoso ou a Medeia que mata os próprios filhos, a campanha por Maddie e as suspeitas sobre os pais. Mais do que o drama, no entanto, o caso transformou-se numa trama policial que alimenta várias teorias da conspiração, todas elas capazes de abalar a nossa fé no género humano. Seja como for, a história está longe do epílogo.

Um dos epicentros desta tragédia aconteceu, no entanto, quando a polícia resolveu apreender – dando-lhe existência – o diário de Kate McCann. No extraordinário mundo do segredo de justiça português há sempre formas de os documentos chegarem à imprensa para proteger um dos lados do conflito – porque se trata de um conflito entre duas trincheiras armadas da sua fé. Quando a imprensa veste a pele de moralista, faz figuras ridículas; ao tentar um assassinato de carácter na figura de Kate McCann, o retrato foi absurdo. Não ocorreu apenas nos jornais portugueses. Os ingleses, espanhóis, franceses e brasileiros, davam largas à sua capacidade de indignação subtil ao afirmarem que, preto no branco, no segredo do seu diário, aquela mãe achava que as crianças eram histéricas, que Maddie era hiperactiva e que o marido não ajudava a tratar dos gémeos. Daí se inferia, na alma popular incitada pelos jornais, que estava tudo escrito e que a polícia ia deitar a mão (com base em quê?) àquela mãe cruel. Ora, todas as mães chamaram histéricos aos seus filhos e todas já acharam que eles eram hiperactivos. Todas já acharam que os maridos não as ajudavam. Todas elas, em algum momento, pensaram na sua vida sem filhos. Todas elas têm vida para além dos filhos e nenhuma delas está exclusivamente destinada, como se fosse carne para canhão, à carreira de reprodutora, puericultora ou educadora de infância. O que os jornais quiseram fazer com a “caracterização psicológica” de Kate McCann a partir de fragmentos escolhidos do seu diário é, francamente, uma filha da putice. O leitor conhece a expressão.

A multidão ulula, querendo justiça, sangue e castigo. O rosto de Kate McCann, aparentemente impassível, convida as multidões ululantes à gritaria; as “multidões do sul” sofrem ruidosamente com os seus coros de carpideiras e ficam indignadas quando o “instinto maternal” não se manifesta em lágrimas ou em expressões delicodoces. Kate McCann não chorou o suficiente – é crime. Segundo um outro jornal, ela “teria problemas de relacionamento e dificuldade em controlar os seus filhos”. Um outro informa-nos sobre os vícios de Kate: ela frequentava “esplanadas, charcutarias e lojas de roupa, decoração e produtos de beleza”, e não dispensava o seu cabeleireiro. Coisas terríveis que uma boa mãe não devia fazer.

A “hora e meia fatal” daquele dia 3 de Maio será estudada ao minuto. Fica claro que existe, por parte dos McCann, algum tipo de negligência e de comportamento duvidoso. Para a polícia, é evidente a necessidade de o fazer; até porque, se não se provar a culpabilidade de Kate no destino de Madeleine, prova-se pelo menos a sua negligência, o que os satisfaz bastante aos olhos do machismo ululante. O caso Madeleine transformou-se, assim, no caso Kate. Como dizia o blogger Bruno Sena Martins (“Avatares de desejo”), espero que eles estejam inocentes. De contrário, o seu sofrimento é incomensurável.

in Jornal de Notícias - 24 Setembro 2007

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