setembro 22, 2007

Milagre de uma rosa só


Frente ao Douro, num lugar belíssimo do Porto, o Uma Rosa abre o apetite e leva a devaneios. O cronista cede a ambos.

Há aquele aroma, não sei se me entendem. Uma espécie de arranque para que as papilas comecem a fazer o seu trabalho de recensea­mento, a distender as suas válvulas (eu sei que não há válvulas naquele lugar, mas a imaginação é delirante e sempre empurrada pela necessidade), a iluminar o caminho (aí está outra imprecisão, porque as papilas não têm luz). Desculpem-me a entrada irónica, mas é preciso libertar a lin­guagem com que às vezes se escreve sobre cozinha – e dito isto voltemos atrás: há aquele aroma, não sei se me entendem.

Sempre o disse, cada restaurante tem o seu momento. E cada experiência pode ser fatal. A minha filha, a mais nova, viu três vezes "Ratatui", o filme; eu vi uma, e gostei muito. Recomendo – há ali passagens antológicas. Uma delas é a apresentação que Colette faz da cozinha e dos seus profissionais diante de um Linguini igno­rante e pateta, ao melhor nível de "Confidential Kitchen", de Anthony Bourdain; outra, é a ida do crítico (Ego) ao restaurante, sobretudo quando se processa a sua reconversão às memórias de infân­cia, aos aromas que vêm do fundo do passado, à substância que assalta - vinda do passado, igual­mente - o momento da prova. É nesse momento que o crítico se revolta finalmente, separando o alquimista do químico. O alquimista vive do eterno; a sua corporação deriva do poético, do per­manente, da repetição minuciosa de uma fórmula que permite a devolução do ouro na sua forma tentada; o alquimista vive do cânone, da experiên­cia metodologicamente secreta e presidida por uma natureza sagrada. O químico vive de cada gesto; vive em cada instante, renasce para cada ensaio, cruza os elementos por amor à experiência e não por dedicação ao produto final.

O momento ideal de um restaurante, bem como de cada visita, ocorre quando o alquimista e o químico se encon­tram e se sentam à mesma mesa, dispostos a tudo. Raramente se consegue, o que é uma pena. Para me sentar à mesa do Uma Rosa não precisei de tanto; bastou-me o apetite, coisa que me tem arruinado a dieta que prometi ao leitor. Por exem­plo, como actuar diante da carta de vinhos que aguça os apetites, triunfais ou delicados? Como resistir às tripas à moda do Porto, enfeitiçadas e pecaminosas, cremosas, com o seu grão esmaecido e pedindo que o dissolvamos entre língua e pala­to? Como resistir ao arroz de garoupa ("à moda da Ilha de Luanda"...), com o seu tom de pecado moreno, africano, marítimo, encostado à minha própria memória de Luanda e da suavidade da res­tinga? Desconheço.

Os amantes da carne que não se preocupem: é deles o monumento mais apreciado da casa, um verdadeiro achado que espero que a monotonia não estrague nem lhe diminua a intensidade e a novidade: o novilho arouquês, um autêntico elemento de combate para apetites carnais e a necessitar de proteína. Na grelha, o arouquês é – que me perdoem as carnes de outras origens, incluída a valente amostra maronesa ou a barrosã – quase imbatível. Falta-lhe apenas o pormenor que os cortadores gaúchos (uruguaios, argentinos, ligeiramente brasileiros também) man­têm para conferir perfeição à peça: aquela tirinha de gordura, a fibra de gordura que alimenta a alma e dissolve as impurezas. Fica a nota, bem no prato.

Agora, que se aproxima o Inverno – saltita o Outono entre temperaturas agradáveis e horas tépidas para refeição –, o Uma Rosa regressará em breve aos cozidos de carne e verduras, outra das tradições que não se podem perder na casa, aos pratos suculentos, às dedicatórias barrocas e a certas incursões de tempero alentejano.

Fica para o fim a nota de intensidade: o pudim de ovos. Trata-se, simplesmente (ah, confissão arrancada a ferros!), de bom pudim. Aquilo que o leitor encontra nos cardápios como "pudim francês". Enfim, pudim. Gemas de ovo, colesterol puro, fornecido em abundância. Pois aqui os ovos levam o contributo do vinho do Porto. Quem não aprecia ou teme o desafio, compreensivelmente, pode optar pelo bolo húmido de chocolate com cobertura de chocolate quente. E que vá aguar­dando pela digestão, pois o Douro, mesmo em frente, é propício ao devaneio. Assim se conserve, com uma rosa para nos comover.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 98
Vinhos brancos: 24
Aguardentes & Conhaques: 18
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 16

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: acessível
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável ao almoço
Preço médio: 20 Euros

UMA ROSA
Passeio das Virtudes, 33-35 – Porto
Tel: 223 403 915
Encerra aos domingos e feriados

in Revista Notícias Sábado – 22 Setembro 2007


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