outubro 20, 2007


Ir ao Nobre (agora no Montijo) é, para o cronista, uma visita ao passado. À melhor parte do passado.

Estendamo-nos um pouco pela metafísica e coloque-se a interrogação: o que é uma coisa que para nós é mais do que ela mesma? Eu respondo: um vinho, a memória de um lugar, um livro per­dido, um rosto, uma palavra, e até um restaurante. Por exemplo, ao beber um certo vinho nada justi­fica que ele seja tão eminentemente caro, tão raro, tão procurado; o que nele se prolonga e nos pro­longa é a sua memória, o que ele evoca na sua his­tória e em nós mesmos (na nossa vida, na nossa perdição). A mesma coisa num restaurante – um restaurante é um restaurante é um restaurante é um restaurante é um restaurante, e por aí fora. Mas, para além disso, é uma memória incerta, vadia, incapazes que somos de o traduzir numa fórmula e numa definição. Em primeiro lugar, por­que nada é igual num restaurante, de um dia para o outro, de uma refeição para outra, de um minu­to para outro. Depois, porque um restaurante (salvo as excepções animais de certas almas) nunca é apenas o restaurante; é o seu chefe de mesa, o seu escanção, se o tiver, os seus criados, o seu 'chef’ ou a sua cozinheira, os seus donos, o que já comemos lá noutra altura, o que comeremos um dia, mais tarde.

Portanto, a minha vida, em certos restaurantes, cruza-se com a minha memória; e, no caso de O Nobre, com a melhor parte da minha memória, naquela zona dela em que estive sentado à mesa, rodeado de um magnífico chefe de mesas, de um grupo de bons criados, de uma cozinha superlati­va, de dois donos de quem sempre gostei muito. Por isso, qualquer referência ao O Nobre há-de vir ter comigo em pontas de pés, silenciosamente, alegremente, festivamente, com o seu rasto de sabores e de desvarios, de devaneios sentimentais e de achados que nunca consegui classificar. Por exemplo, quando dona Justa lançava o aviso sobre a próxima chegada de "cascas" ou "casulos", vindos de Macedo de Cavaleiros, prenúncio certo de almoçarada; e lá íamos em peregrinação. Coisas que só ali, como aquela massinha (macarrão largo, no ponto) cozinhada num caldo de feijão encarna­do, para acompanhar uns lombinhos na grelha. Coisa doméstica e familiar, no velho O Nobre, da velha Rua das Mercês, na Ajuda. Depois da Ajuda, a experiência com o espaço da Expo e das Torres de Lisboa correu mal, matéria que não é da minha conta, mas que não teve a ver com a qualidade das comidas.

Lembro-me de um dos grandes jantares nesse velho O Nobre, da Ajuda, com Manuel Vázquez Montalbán, para quem eu, José e Justa Nobre pre­parámos um menu a propósito, que terminou numa degustação de digestivos amplamente destrutiva. Jantar magnífico em que Montalbán se ergueu num brinde inesquecível: "À liberdade, à beleza e a Sharon Stone." Aplaudamos. Onde quer que Manolo esteja, lembrar-se-á das três coi­sas. Recordam-se do célebre "apagão" que pôs uma parte de Portugal às escuras, por causa de umas cegonhas displicentes? Estava eu no O Nobre (o da Expo), e choveu sobre o rio. Agora, para pôr as memórias em dia, é preciso atravessar o Tejo, jus­tamente, e rumar à praça de touros do Montijo para encontrarmos a mesma mesinha cheia de entrada apetitosas, dos mexilhões aos peixinhos da horta, dos embutidos aos carapauzinhos de escabeche, antes de chegarem as duas sopas do pódio: a de crustáceos em massa folhada e a de santola (que continua a ser servida na própria casca). Sou um saudosista; a seguir, o lombo de robalo "à Justa", uma das glórias de família; depois, outras glórias: a perna de cabrito no forno, a empada de caça, o carré de borrego, o bacalhau em crosta de broa, o pato com azeitonas ou – ah, quem me dera – as saudades da perdiz à convento de Alcântara, momento de paragem no velho O Nobre da Ajuda, um prato de referência do Dr. Mário Soares, seu frequentador em regime de lugar cativo.

Peço desculpa mas sou mau juiz no O Nobre. Reconheço o sabor, o tempero, a dedicação e o ar travesso de dona Justa na sua cozinha – isso basta-me para recordar alguns dos melhores momentos da minha vida. Uma sensação de tranquilidade que nenhum desaire há-de anular ou diminuir. E fico em silêncio. O silêncio dos inocentes.

À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 115
Vinhos brancos: 56
Espumantes & Champanhes: 10
Aguardentes portuguesas: 18
Colheitas tardias e moscatéis: 8
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 16

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 30 Euros

O NOBRE
Avenida de Olivença (junto à praça de touros)
2870-108 Montijo
Tel: 212 317 511
Encerra às terças-feiras

in Revista Notícias Sábado – 20 Outubro 2007


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