outubro 08, 2007

O fim de Bush e o campo liberal

Estão a terminar anos de suplício para a consciência liberal; o fim desse período concluir-se-á com o adeus ao consulado de George W. Bush nos EUA. Durante os últimos sete anos, depois do 11 de Setembro, essa consciência liberal ficou refém de um terror que não podia negar, do terrorismo que aumentou as suas actividades e de uma reacção desajustada cujas consequências não pôde prever, além de ter sido prisioneira das atitudes do presidente americano e dos delírios de uma série de ambiciosos conselheiros que viam o mundo como um laboratório para o seu fundamentalismo cristão.

A invasão do Iraque constituiu um momento crucial da história contemporânea. Todos aqueles que viram nos atentados do 11 de Setembro um sinal da barbárie e uma ameaça à coexistência pacífica, acabaram por ser traídos pelas sucessivas mentiras da administração americana sobre o “arsenal” de armas de destruição massiva ao dispor de Saddam Hussein. Se a retórica de George W. Bush era sobretudo defensiva, a quantidade de erros acumulados durante a invasão do Iraque e no restabelecimento de um estado de direito no Afeganistão não podem ser desculpados de forma leviana. Tanto a actual administração americana como os seus ideólogos têm de ser responsabilizados por esses equívocos e por terem abusado da boa-fé de milhões. É uma lei da história e da política. E foram esses erros, equívocos e desleixos que mais contribuiram para atacar o campo liberal nos últimos anos.

George W. Bush é um empecilho à afirmação da democracia e da consciência liberais – e um instrumento acessível para o anti-americanismo primário. A direita e o centro-direita precisam de livrar-se desse empecilho para recuperarem a credibilidade que saiu beliscada do confronto com os velhos fantasmas do anti-americanismo, o único pilar que sobrou à esquerda tradicional depois da queda do império soviético. Precisam, também, de se livrar dos neo-conservadores e da sua tralha religiosa para regressarem ao cânone do liberalismo tradicional e do conservadorismo europeu; e precisam de livrar-se da tralha neo-liberal para voltarem a ser liberais, intensamente liberais, livremente liberais.

Chegou a hora de assumir que as doutrinas de George W. Bush para o seu país são antiliberais – e, para o mundo, mostraram que são desleixadas.

Não se percebe como, na história das ideias do último quartel do século XX, um termo tão expressivo e tão belo, “liberal” (reproduzo as palavras de Bernard Henri-Levy no seu último ensaio sobre a América), pôde ser tão enxovalhado pela esquerda e pela direita; ele diz respeito a uma consciência livre da cidadania, a uma independência de carácter que é herdeira dos cavalheiros e das ideias que no século XIX forjaram as nossas sociedades democráticas; diz respeito ao primado da liberdade, dos direitos dos cidadãos e do rigor republicano sobre o interesse absoluto do Estado e o prolongamento dos interesses de casta. Isso é ser liberal no nosso velho mundo.

O fim do consulado de George W. Bush não colocará um ponto final no anti-americanismo. Novos fantasmas se erguerão para mitigar a fome de totalitarismo e de horror. Mas é uma oportunidade para que o campo liberal procure novas soluções para problemas inteiramente novos colocados pelas sociedades contemporâneas: comportamentos individuais, atitudes colectivas, liberdade de escolha. Com o fim do neo-conservadorismo americano é provável que possamos falar de novo do que nos importa: ser conservador, ser liberal. Recuperar-se-á, provavelmente, uma parte da liberdade de crítica, hipotecada na conjuntura que dominou os dois mandatos de George W. Bush.

Ou seja: não se podem combater os fantasmas antiliberais com recursos que lembram o antiliberalismo clássico da direita.

in Jornal de Notícias – 8 Outubro 2007

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