outubro 22, 2007

O telemóvel do procurador

A entrevista do senhor Procurador-Geral da República ao semanário “Sol” é digna de ser lida. Tenho por ele grande simpatia – nasceu no interior, foi estudar na universidade, subiu a pulso, toda a gente sabe que gosta de coisas decentes como comer, ler ou viajar (nos tempos que correm e com as “figuras públicas” que temos, não é nada mau). É um percurso sério, e o procurador-geral também tem um currículo sério.

O essencial da entrevista é muito positivo, sobretudo quando dá conta de algumas das suas e nossas inquietações, nomeadamente sobre a violência na escola e a violência sobre os velhos. Não é admissível que as autoridades continuem a mostrar tamanha passividade acerca das agressões a professores ou a estudantes, perpretadas por alunos que poucas vezes são denunciados ou por medo ou por inércia diante da passividade e indiferença gerais. É bom, aí, que Pinto Monteiro cite o antigo mayor de Nova Iorque a propósito da “tolerância zero”: tolerância zero diante do intolerável. A violência sobre os velhos é outro capítulo silencioso dessa vergonha clandestina e doméstica, sobretudo porque se trata de pessoas que não se podem queixar, que poucas vezes são ouvidos pela imprensa e pela televisão, ocupadas com “a juventude” e os imbecis. Os maus tratos a velhos são intoleráveis, como a violência sobre crianças, como a violência sobre os indefesos. Mesmo quando, diante desse quadro, o Procurador-Geral desvaloriza a violência sobre as mulheres (porque se podem queixar e porque é um assunto em relação ao qual a imprensa está, felizmente, atenta), ele é sensato. E mostra ser um homem atento. Outro dos pontos positivos da entrevista é, evidentemente, a condição de “arguido”, assunto a que já se tinha referido numa entrevista à RTP – o país está cheio de arguidos inocentes. E a condição de arguido pôde estender-se por anos, sem que o processo judicial seja concluído e sem que a máquina judicial acelere e divulgue resultados e conclusões.

No entanto, de toda a entrevista resultaram mais públicos dois pontos: primeiro, quando o Procurador-Geral revela existirem “condes, viscondes, marqueses e duques” no Ministério Público e no aparelho judicial; depois, quando diz desconfiar que o seu telemóvel possa estar sob escuta. Naturalmente, a corporação protestou: se há condes, viscondes, marqueses e duques, convinha que soubéssemos quem são. Problema de corporação.

Agora, a questão das escutas telefónicas parece-me intrigante. Repare-se: não se trata de um cavalheiro qualquer a referir arbitragens de futebol nem de um anónimo a falar de corrupção. Foi o Procurador-Geral da República a declarar que, provavelmente, está sob escuta. Isso é preocupante. Deve indignar-nos e a PGR deve entregar o telemóvel do seu responsável máximo para ser devidamente inspeccionado (se possível, por um laboratório estrangeiro).

Todos os portugueses de boa-fé querem saber quem pode estar a escutar o Procurador-Geral da República; porque quem pôs sob escuta o PGR, pode colocar sob escuta o presidente da República, o primeiro-ministro, os inspectores da Judiciária ou – o que é pior, muito pior, absolutamente pior – qualquer um de nós. Defendemos, como pessoas decentes, que as escutas só podem ser ordenadas por um juiz; algum juiz autorizou que o senhor Procurador fosse colocado sob escuta? Com que pretexto? Saber se ele, afinal, vai à caça ou come bacalhau? Naquele contexto, da entrevista, o episódio parecia inocente. Mas não é. Os magistrados querem que o procurador se desdiga por razões profissionais; é com eles. Eu só quero ser esclarecido porque acho que as escutas telefónicas, o segredo de justiça e a posse de demasiadas informações são coisas perigosas. Porque se nenhum juiz ou MP ordenou essas escutas, então é porque elas foram possíveis por ordem de alguém superior. Isso é tremendo. Temos de saber tudo sobre o assunto.

in Jornal de Notícias – 22 Outubro 2007

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