novembro 19, 2007

A ginja

O leitor ou conhece ou ouviu falar da Ginginha do Rossio, em Lisboa. De contrário, terá de acreditar na minha descrição: é um minúsculo estabelecimento de bebidas especializado na venda de uma das mais populares bebidas portuguesas, a ginginha; com clientela rápida e despretensiosa, a Ginginha do Rossio é uma referência para turistas que passam pela zona e para várias gerações de frequentadores que, por razões certamente inexplicáveis, continuam a passar pelo seu balcão e a pedir “uma com elas” ou “sem elas”. Uma ginginha. O estabelecimento nunca envenenou ninguém, sendo certo que também não é um modelo de limpeza. Mas é a Ginginha do Rossio.

O meu amigo Paulo Moreiras, romancista, dedicou à ginja dois livros exemplares. De acordo com a sua preciosa investigação, a melhor ginja é a da zona de Óbidos e a Ginginha do Rossio servia um dos melhores exemplares. Seja como for, Óbidos por um lado, e a Ginginha do Rossio por outro, enchem-se de turistas e de apreciadores que vão em busca dessa bebida simpática, comovente e em risco de vida. Como é bom que se diga, Paulo Moreiras começou a investigar a história da ginja depois de lhe terem dito, num restaurante, que não era uma bebida “à altura”.
Desta vez, foi a ASAE, Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, que partiu em busca da Ginginha do Rossio, encerrando-lhe as portas. O argumento é a falta de higiene, tendo sido capturadas algumas garrafas da bebida.

Ao capturar as garrafas e ao encerrar o estabelecimento, a ASAE estava apenas a cumprir a sua função, que está distribuída pela segurança alimentar, pela segurança de produtos e instalações, pelas questões de propriedade intelectual e industrial e também – naturalmente – pelo turismo. Ou seja, a ASAE zela pelo cumprimento da lei. E zela de forma muito eficiente, apresentando-se ao serviço público de colete à prova de bala e de gorro passa-montanhas. Por aí já o leitor vê como é arriscado o seu trabalho e como é perigoso o mister de fiscal das actividades relacionadas com a segurança alimentar. Ser atingido por uma ginja que não mencione a sua origem é grave e fatal.

Acontece que Portugal é, segundo a ASAE (e depois das suas investidas) «um dos países mais seguros no que diz respeito à higiene e qualidade dos alimentos». Isso é uma vantagem enorme. Hoje já não há castanhas assadas embrulhadas nas Páginas Amarelas nem bolas-de-berlim nas praias. A aguardente de medronho tradicional, que procurávamos na Serra de Monchique, e que já tinha sido atingido pelos incêndios, também foi perseguida pela ASAE. Há duas ou três semanas precisei de negociar uma aguardente tradicional de vinho verde, refrescada, como um americano durante a lei seca.

A Ginginha do Rossio era um monumento nacional. Uma referência que amigos italianos, brasileiros e alemães procuravam para provar uma das melhores ginginhas portuguesas. Aquele espaço tresandava a história e a convivialidade, a sorrisos largos e a um leve ondular de fígados conservados em ginja. Pois que se varrese o seu chão com mais frequência. Que se pusesse um médico à porta. O mal, porém, não é apenas o encerramento da Ginginha do Rossio, esse parapeito da história da cidade e do país. O mal é a onda de lixívia sintética que vai passando por tudo quanto é “segurança alimentar” nas vetustas tascas onde vinhos fatais fizeram literatura e, certamente, doenças hepáticas. Essa onda que prega a normalização dos costumes alimentares acabará com a pequena alma dessas nobres instituições de pecado, como a Ginginha do Rossio. Portugal aplica estas leis melhor do que ninguém. A breve prazo, agentes policiais entrarão nas nossas casas apreendendo bacalhau com excesso de sal e ginja da Beira Alta. Seremos saudáveis e faremos jogging. Tudo o resto será encerrado.

in Jornal de Notícias – 19 Novembro 2007

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