dezembro 31, 2007

O regresso da Santa Aliança

Finjamo-nos de desentendidos e de inocentes e agradeçamos a Luís Filipe Menezes o facto de ter lembrado um dos pactos obrigatórios que tem vindo a garantir a existência do Bloco Central. Com aquela candura fingida que usa nas suas declarações, o líder do PSD lembrou que estava decidido dividir, entre os dois maiores partidos do regime, o Banco de Portugal e a Caixa Geral de Depósitos. Convenhamos que não é exactamente assim. O bolo a repartir não eram as instituições, propriamente ditas, mas sim as suas presidâncias. Há uma diferença, evidentemente, mas agora sabemos que o pacto existia, e isso é importante.

Finjamo-nos de ainda mais inocentes (como se a candura de Menezes não nos impressionasse), para nos perguntarmos se é mais importante ter um representante partidário na presidência de cada um dos bancos do regime, ou, pelo contrário, colocar lá gestores acima de toda a suspeita.

Estes pactos não são originalidade portuguesa; existem como um contrato subterrâneo em vários países onde o Estado desempenha um papel essencial na economia. Mas a reivindicação desse pacto, da forma pública e cândida como Menezes a mostrou, é que parece uma novidade. Parece – mas não é. Os cargos públicos são normalmente distribuídos como uma espécie de garantia da sobrevivência do Bloco Central, o político e o dos interesses.

Simplesmente, é tal a conivência entre aquilo que devia ser o debate político, e o que se tem visto ser a lógica dos interesses do “centrão”, que já não há diferenças entre uma coisa e outra. Ou seja, para o que nos interessa: a política morre às mãos dos interesses dos dois partidos do regime. Para quem pensava na política como uma arte nobre, um lugar de debates, um território de causas e de ideias – o retrato não é edificante.

Isto acontece, não nos esqueçamos, por causa do BCP, o principal banco privado português, a que a lógica de outros interesses conduziu à subserviência e à irrelevância como instituição, a ponto de os seus principais accionistas estarem dispostos a entregar a sua direcção ao presidente da CGD, positivamente conotado e ligado ao PS. Convenhamos que não é exactamente assim: não foi o Estado nem o governo (entidades misteriosas que se confundem cada vez mais, à boa maneira latino-americana) que impuseram o presidente da Caixa ao BCP. Foram os accionistas do BCP que, manietados e cercados (pela ameaça de investigações policiais, pela descoberta de fraudes e de manipulação, pela evidência de actos de gestão que podem ser criminalizados), recorreram ao presidente da Caixa, convidando-o a livrarem o banco de mais trapalhadas. Em outros países, um convite desta natureza seria amplamente discutido. Em Portugal é apenas o sinal de um “capitalismo menor”, subserviente e incapaz de existir sem os favores do Estado, colocando-se sempre a jeito e para melhor absorver favores, simpatias, influências e até negligências – como a do Banco de Portugal diante das operações irregulares que o BCP terá cometido desde 2000.

O ano termina desta maneira: com o Estado fortalecido e com os cidadãos indefesos. Os interesses dos grupos financeiros coincidem com os interesses do Estado; é uma santa aliança que deixa os cidadãos ainda mais desprotegidos, incapazes de reagir diante do encerramento de centros de saúde e de blocos hospitalares, indefesos diante do autoritarismo da máquina do Estado, abandonados às extravagâncias fiscais, sitiados pela vida difícil que se anuncia para 2008. É nisso que coincidem indecorosamente os partidos do regime, transformados em auxiliares do Estado em vez de se colocarem do lado dos cidadãos. Só isso explica o comportamento vergonhoso de eleitos que não se manifestam e aplaudem tanto o encerramento de hospitais como as perseguições políticas a que assistimos durante o ano de 2007. Estamos bem entregues a esta gente, não há dúvida.

in Jornal de Notícias – 31 Dezembro 2007

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