janeiro 07, 2008

O inútil louco de Barents

Mal atravessávamos a ponte entre Puttgarden e Rødby, entre a Alemanha e a Dinamarca, começava o Longínquo Norte – escrevo-o com maiúsculas porque é um território fatal. Nesses anos, oitenta, comíamos bolachas e abríamos latas de conservas nas carruagens dos comboios. Havia conversas intermináveis que a idade interrompeu. Nunca mais seremos jovens e raramente atravessaremos a fronteira para Rødby. Tínhamos mochilas e cadernos, horários de comboios e coleccionávamos coisas disparatadas – postais ilustrados, caixas de fósforos, maços de cigarros, bilhetes de autocarro, bilhetes de entrada em museus. As viagens eram disparatadas como nós. Imagino uma viagem como as de antigamente, quando o mundo era mais seguro e eu era mais novo. Não tínhamos acesso à internet e poupávamos moedas para telefonemas curtos em cabines de estações ferroviárias. Nesses anos, depois de Rødby havia ainda uma curta viagem até Copenhaga e, de Copenhaga, havia percursos para o mais norte do norte, até Honningsvåg (o Cabo Norte), onde começaria o percurso para a viagem que mais me fascinava, até às ilhas Spitzberg, a meio caminho do Pólo – apenas para visitar Longyearbyen ou, para os mais afoitos, Ny-Ålesund, uma cidade semi-deserta na península de Brøgger, onde não há pássaros, onde não há árvores e onde os picos negros das montanhas se erguem sempre para lá das neblinas, a 1000 quilómetros do Pólo Norte. Céu escuro de cinza e gelo – o cenário das Spitzberg, o arquipélago originalmente chamado Svalbard, tinha-o conhecido nas sagas islandesas do século X, se bem que os historiadores refiram que as ilhas foram ocupadas ou descobertas pelos vikings apenas no final do século XII.

O meu personagem favorito, nesse recanto do mapa, era Willem Barents, o holandês que no século XVI redescobriu as ilhas enquanto procurava uma passagem para a China entre o gelo do Norte e as tempestades permanentes do mar que ficou com o seu nome. Acabou por morrer em Novaya Zemlya (Nova Zembla), na Rússia, em 1596, no termo dessa expedição que nunca se concluiu.

Barents, que nasceu à beira do mar tranquilo da Frísia, é um navegador ao contrário de todos os outros do seu tempo e para mim sempre foi um mistério. Quando toda a Europa se preocupava com o domínio dos mares a Sul, enfrentando os demónios de África e da América, festejando as rotas dos trópicos, apaixonando-se perdidamente pelo novo paraíso prometido entre águas cálidas e vegetação deslumbrante, Willem Barents partia para o Norte – onde não havia mais do que o deserto. O seu sonho (como o de Roald Amundsen) era o descobrir passagens entre continentes, coisa que hoje não será considerado de grande utilidade. Uma viagem até Ny-Ålesund custará cerca de 3 000 euros e é – também – completamente inútil, se considerarmos que não tem importância relevante o facto de ali estar a linha de caminho-de-ferro mais ao norte do mundo nem uma comunidade científica que observa a forma como os gelos se desagregam e o planeta se perde.

Na verdade, o mundo é hoje um mapa povoado de placas de sinalização onde pouco mais há a descobrir. O leitor, em pleno mês de Janeiro, quer ouvir falar de tudo excepto de um arquipélago onde não vivem mais de duas mil pessoas, sitiadas pelos degelos e pela velocidade do vento que vem do Norte, intenso, frio, negro.

Visitar o mar de Barents, a norte de Murmansk, limitado a leste pela ilha de Novaya Zemlya, é também uma viagem inútil. Contaminado, destruído pelos dejectos da velha marinha soviética e da exploração de petróleo, lembra-me apenas o louco navegador holandês que ali morreu à espera da Primavera, para tentar chegar à China pelo Norte do mundo. Coisas inúteis e fantásticas. É delas que se faz o espírito da viagem.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Janeiro 2008

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