maio 18, 2008

Ilha sentimental e afectiva de todos

Escrevo esta crónica a bordo de um avião que sobrevoa o Congo, regres­sando de uma viagem que me levou à Ilha de Moçambique, a primeira capital da ex-colónia, a definitiva capital senti­mental e afectiva do país. A primeira vez que atravessei aquele canal foi há muito tempo, mas era uma tarde quente, havia céu azul – e, como acontece com todas as tardes na Ilha de Moçambique, tinha acabado de levantar-se o mesmo vento que deixa o mar desenhado como numa fotografia antiga, um mar de cartolina com vagas cobertas de espuma, rodean­do as muralhas das fortalezas e sacudin­do os ilhéus soltos diante da baía.

Todos nós somos capazes de repetir até à exaustão a impressão inicial desse encontro com a Ilha – falamos de um “momento mágico”, o mesmo que há muito tempo os portugueses tiveram com a costa do Índico. Mentiria se vos disses­se que é o mais belo lugar do mundo; ou, pelo menos, não estaria a dizer-vos toda a verdade sobre o mundo. Mas não esta­ria a enganar-vos ao dizer que se trata de um dos lugares que ninguém esquece e que nunca fui capaz de esquecer. Por isso, ao visitar a Ilha pela quarta vez, sinto re­petir-se a mesma e profunda magia que percebi quando, naquela tarde de De­zembro, atravessei os arcos na direcção da velha igreja matriz. E é como se, de repente, de uma das ruas laterais, rente à Pousada, aparecesse a motorizada de Abdurrazaque Djamú, meu querido xeque, que me abriu as portas da sua mesquita e da sua memória. E foi como se de repen­te regressasse ao final de uma manhã em que entrei no Café Ancora d'Ouro e re­petisse os gestos de outros frequentadores como Jorge de Sena (que aí escreveu o célebre poema Camões na Ilha de Mo­çambique), ou Rui Knopfli (o autor de um dos mais belos poemas da nossa lín­gua, A Ilha de Próspero), ou Alberto La­cerda. E foi como se de repente Camões ou Tomás António de Gonzaga tivessem prolongado a sua estada e assistissem ao crepúsculo na Fortaleza de São Sebastião.

Os retratos são simples, comoventes, inesquecíveis: arcos nas ruas, procurando a sombra; praças onde o sol e a amável luz do Indico douram a tarde; corvos mari­nhos atravessando o canal, vindos do Mossuril, onde as salinas perfumam os terrenos de mangue, ou se estendem até à pequena savana do Lumo; as madruga­das suaves da Ilha, vistas do terraço de uma casa voltada para as ilhas do largo; a partida dos primeiros autocarros (“chapas”) na direcção de Nampula, por volta das três da madrugada, enfrentando o cla­rão de luz inaugural que há-de formar-se ao longo da estrada; os muros dos cemi­térios, dando uns para os outros - os cris­tãos, os muçulmanos, o crematório hin­du - para mostrar que a Ilha é de todos, naquela abundância de cruzes e minare­tes sob o céu de África; a balaustrada que acompanha o passeio sobre as praias, na­queles crepúsculos suaves; a exuberância da arquitectura militar, a tranquilidade si­tiada das praças onde estátuas (além da de Camões e da de Vasco da Gama) de arte nova se erguem para testemunhar a passagem europeia naquele território.

A Ilha é também tudo isso e os seus pequenos e modestos hotéis. O resto es­tá dentro do nosso coração, fechado ou aberto como um atrevimento diante do passado, da memória e da beleza do mar. Acabo de regressar de mais uma visita à Ilha – e se puder regresso em breve.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Maio 2008

Etiquetas: